Quando a cabeça pega fogo e os cabelos caem 

Anteontem chegaram as bolsas de gelo para a cabeça que eu comprei na Amazon. Uma delas é inovadora, o gel embebido num tecido esponjoso, aparentemente bem mais eficiente e prático. Ontem usei pela primeira vez essa touca. O alívio é grande, mas não dura muito. As áreas mais inflamadas do couro cabeludo são sensíveis e doloridas, como se fossem queimaduras. É possível sentir a temperatura elevada dessas regiões. No meu caso, elas formam o desenho de uma ferradura irregular na cabeça.

Foram precisos vários anos para concluir o diagnóstico de eflúvio do telógeno intermitente crônico. As peças do quebra-cabeças foram caindo aos poucos, bem como a minha familiaridade com o tema, que antes não tinha interesse nenhum para mim. 

Esse relato é motivado pela mudança de ocupação de Fernando Aguiar, meu sobrinho. Jornalista brilhante, analista sagaz, Fernando resolveu dedicar-se à terapia capilar. Ele tem tratado vários casos de eflúvio do telógeno, e eu resolvi embarcar nessa viagem dele.

Eflúvio do telógeno intermitente crônico é o termo utilizado para designar uma forma de alopécia e o processo que a produz. É uma forma de perda de cabelo que incide preferencialmente em mulheres em peri e pós-menopausa, como eu. Em humanos, o cabelo do escalpo tem características fisiológicas diferentes de cabelos de outras partes do corpo. Ele responde a estímulos diferentes e a comunicação hormonal também é diferente. Assim, a maior parte das alopecias afeta apenas o cabelo do escalpo. 

Dentro dessa categoria, as alopecias são divididas em dois grandes grupos: o das alopecias cicatriciais e o das alopecias não cicatriciais. As alopecias não cicatriciais podem, dependendo das circunstâncias, ser revertidas, enquanto nas cicatriciais ocorre a destruição irreversível de folículos. As alopecias não cicatriciais são as mais prevalentes. Como estamos falando sobre o eflúvio do telógeno, falemos sobre as alopecias não cicatriciais.

As alopecias não cicatriciais podem ser:

Alopecia androgenetica

Alopecia areata

Efluvio de telogeno 

Deixo a alopecia areata deliberadamente de lado, uma vez que se trata de uma desordem auto-imune que produz áreas irregulares de perda de cabelo no escalpo. Chamo atenção, porém, para o aspecto da auto-imunidade, que alguns autores consideram estar implicada em outras formas de alopecia.

Como a alopecia androgenética e eflúvio do telógeno podem ocorrer de forma combinada, vejamos as diferenças. Como o nome diz, a alopecia androgenética está associada a resposta aos hormônios masculinos (testosterona e diidrotestosterona). Exatamente como isso se dá entre pacientes mulheres ainda não é bem conhecido. A característica visual mais marcante da alopecia androgenética é o padrão simétrico de queda de cabelo com a linha frontal do cabelo regredindo gradualmente, além de cabelos cada vez mais finos. Fisiologicamente, a pessoa perde cabelos terminais (o cabelo mais longo do escalpo), e ocorre uma miniaturização do cabelo com pelos cada vez mais finos até que são substituídos por velum (o cabelo fino e curto que cobre também outras áreas do corpo). A fase anágena se torna cada vez mais curta, não dando tempo para que o fio cumpra todo seu ciclo.

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O eflúvio do telógeno, ao contrário da alopecia androgenética, encurta a fase final do ciclo do cabelo: o telógeno. Essa é uma das características que ajuda no diagnóstico: em testes de coleta e classificação de cabelos perdidos durante uma lavagem, a porcentagem de pelos curtos (maior porcentagem em alopecia androgenética) ou de pelos longos (maior porcentagem em eflúvio do telógeno) é determinada por simples contagem. Esse é um teste grosseiro, que pode ser feito em casa, e que pode proporcionar uma indicação válida em muitos casos.

Alguns autores caracterizam o eflúvio do telógeno como uma alopecia não inflamatória. Porém, há evidência relevante na literatura para a associação do eflúvio de telogeno, particularmente na sua manifestação crônica e intermitente, a fatores de auto-imunidade e de hiper-inflamação sistêmica).

Do ponto de vista estético, por ser uma resposta inibitória dos folículos à dihidrotestosterona, a alopecia androgenética tem efeito estimulante sobre os pelos do rosto, braços, barriga, e outras partes do corpo. A alopécia areata representa uma resposta auto-imune das células dos folículos do escalpo, sem afetar os folículos dos pelos do resto do corpo. O couro cabeludo se apresenta com áreas irregulares sem cabelo, sendo uma das formas mais traumatizantes de alopecia em mulheres. O eflúvio do telógeno intermitente crônico é a forma de alopécia de mais difícil diagnóstico e que menos é compreendida pela pesquisa médica. Ela frequentemente co-ocorre com a alopécia androgenética, mas é qualitativamente diferente quanto ao tipo de tecido afetado e perdido. Ela confunde o portador porque a perda de cabelo não é constante, e sim intermitente, e pode ocorrer ao longo de muitos anos. A cada fase de redução de perda, a pessoa procura identificar qual intervenção pode ter funcionado, apenas para descartar todas as hipóteses na fase de maior perda seguinte. 

Ao longo dos anos em que observei meu cabelo mudando, caindo, enfraquecendo e ficando fino, aprendi que o processo não é linear. Por isso o diagnóstico inclui o termo “intermitente”. Como eu fiz uso de análogos de testosterona, suspeitei que fosse efeito colateral dos mesmos. Seria estranho, pois esse é um efeito que eu nunca manifestei, em muitos anos. Efeitos colaterais de hormônios não afetam igualmente as pessoas. Eles são altamente individuais. 

O teste feito com cabelos perdidos numa lavagem e coletados numa rede confirmou que se tratava de eflúvio do telógeno, e não alopécia androgenética. Mesmo assim, sempre mantemos aberta a possibilidade de se tratar de outra forma de alopecia mais grave, que causa dor e sensação de queimadura no couro cabeludo.

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Eflúvio do telógeno intermitente crônico é uma condição de etiologia desconhecida e prognóstico incerto. Não se sabe a causa, e suspeita-se ser mais uma das respostas hiper-inflamatórias e hiperimunes (do que a autoimunidade é um subtipo) a fatores de stress ambiental, frequentemente sequelas de infecções, mas também a agressões sociais. São mais frequentes após infecções virais do que bacterianas, como suspeita-se ser o caso de encefalomielite miálgica, fibromialgia, entre outras. Comecei a observar queda e enfraquecimento do cabelo após uma infecção seríssima na coluna vertebral no final de 2014, chamada espondilodiscite. A infecção era bacteriana. Ao final de 2015, viajei para os Estados Unidos, onde acabei sem saída em função de dramáticos desenvolvimentos, o mais marcante tendo sido o sequestro e sumiço do homem com quem casei. O episódio foi todo abafado, a polícia parecia “de mãos atadas”, e eventualmente eu soube que o caso envolvia atores sociais que em hipótese alguma eu teria como combater. Meus irmãos aproveitaram a situação para praticar algum tipo esquisito de “retribuição”, troco eu não sei bem para quê, mas envolveu “impor humilhação”. Me disseram que “meu problema” era não aceitar humilhação, e que portanto agora eu teria que “aprender”.

Metade do cabelo que restava caiu. 

Nesse momento, numa fase em que morei em quartos de despejo, em quartos alugados em muquifos de racistas delinquentes do sul dos Estados Unidos, entre outras aventuras, cortei o cabelo e passei a aplicar henna, com uma certa esperança de recuperar a saúde do cabelo e engrossar um pouco os fios. Não deu certo.

Em junho de 2021, meu pai morreu. O estranhíssimo e dolorosissimo luto, somado a um rompimento definitivo de relações com meus irmãos, abriram um período em que tanto minha dor crônica saiu de controle e me colocou à mercê da indústria da saúde estadunidense, como meu cabelo não era mais que um punhado de fios finos. Ainda tentei tratar o cabelo, usando faixas e gorros para esconder o estrago, tentando mil tratamentos diferentes – “needling”, luz infravermelha, laser de baixa intensidade, diversas substâncias identificadas em pesquisa ainda em andamento –  até que em mais um golpe desses que só acontecem aqui, nos Estados Unidos, no verão de 2022, raspei a cabeça. Em parte foi um reflexo de outras desistências, e a partir daí eu envelheci uma década em 3 meses.

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Eu achei que seria mais doloroso ver minha cabeça raspada. Achei também que facilitaria abrir mão do resto do que há para abrir mão, e da vida em si. Não foi.

Hoje vivo com cabelos cortados com máquina de tosa. As áreas afetadas pela alopécia doem. A pele do couro cabeludo é sensível, coça e arde como se fosse uma grande ferida. De vez em quando aparecem bolhas e feridas, que passam.

Esse é o quadro – lembre-se: sabemos que existe a possibilidade de que não seja apenas eflúvio do telógeno, e eu aqui torço para que seja somente isto.

Num outro relato, descreverei todos os tratamentos que eu tentei e tento, a maioria dos quais não teve resultado algum. 

Obras consultadas e mais leituras:

Al Aboud AM, Zito PM. Alopecia. [Updated 2023 Apr 16]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2023 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK538178/

Rebora A. Telogen effluvium: a comprehensive review. Clin Cosmet Investig Dermatol. 2019;12:583-590

https://doi.org/10.2147/CCID.S200471

Rebora A. Intermittent Chronic Telogen Effluvium. Skin Appendage Disord. 2017 Mar;3(1):36-38. doi: 10.1159/000455882. Epub 2017 Jan 28. PMID: 28612000; PMCID: PMC5465665.

Saki N, Aslani FS, Sepaskhah M, Shafiei M, Alavizadeh S, Hosseini SA, Asl FA, Ahramiyanpour N. Intermittent chronic telogen effluvium with an unusual dermoscopic finding following COVID-19. Clin Case Rep. 2022 Aug 9;10(8):e6228. doi: 10.1002/ccr3.6228. PMID: 35957778; PMCID: PMC9361802.

Trüeb RM. Telogen Effluvium: Is There a Need for a New Classification? Skin Appendage Disord. 2016 Sep;2(1-2):39-44. doi: 10.1159/000446119. Epub 2016 May 21. PMID: 27843921; PMCID: PMC5096239.

Imagens:

Fotografia “oficial” – 2011

2 de dezembro de 2011

18 de dezembro de 2016

15 de janeiro de 2017

18 de novembro de 2018

20 de outubro de 2020

11 de novembro de 2022

13 de dezembro de 2022

12 de abril de 2023 (havia bolhas e feridas na cabeça)

20 de março de 2023

31 de maio de 2023